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"Sem afeto, nenhum conhecimento vale a pena", diz pesquisadora em educação

Em tese de doutorado que se transformou em livro, a professora Shelly Blecher Rabinovich aponta a importância de levar em consideração as vivências da criança na escola. O uso de jogos e brincadeiras no aprendizado e a conjunção entre escola e família também são primordiais



A passagem dos alunos da Educação Infantil para o Ensino Fundamental após a aprovação da Lei 11.274/2006, que tornou obrigatório o ingresso de crianças de 6 anos de idade no primeiro ano, foi tema da tese de doutorado da professora e pesquisadora Shelly Blecher, que defendeu o trabalho na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Dúvidas sobre como esse processo foi realizado e como as escolas se adequaram para receber crianças mais novas foram alguns dos pontos abordados no trabalho de Shelly. Aqui a autora e mãe de Michel, 10, e Fernanda, 7, conta mais sobre o assunto, que se transformou no livro Entre Letras e Números - a Voz das Crianças, dos Educadores e da Família (Novo Século Editora).


O que mais chamou sua atenção durante o processo de pesquisa do livro? Durante um ano e meio acompanhei de perto cerca de 80 crianças, protagonistas da história. Também ouvi professores, coordenadores e as famílias de alguns alunos da rede pública de São Paulo. Queria entender o que se esperava dessa mudança. Enquanto estavam no ensino infantil, as crianças me diziam que desejavam aprender a ler e a escrever no ensino fundamental. Quando já estavam nele, me contaram que sentiam saudades das brincadeiras e dos momentos lúdicos do infantil. Outro ponto é que a rotina da escola de educação infantil deveria ser respeitada no ensino fundamental. A criança pode aprender matemática por meio de um jogo de boliche, interagindo com os amigos, por exemplo.


E esses momentos de que eles sentiam falta não aconteciam mais no ensino fundamental? Essa é a grande questão. O mais comum é que as escolas não tenham um processo importantíssimo, que é o de continuidade das vivências e aprendizados com os quais a criança já tinha contato. Muitas vezes, falta uma transição. É como se a criança fosse uma página em branco; ignora-se o repertório que ela já tem.


Quais são as principais vantagens e desvantagens do ingresso das crianças mais novas no Ensino Fundamental? A principal vantagem é que temos mais crianças na escola, já que havia muito mais demanda para a educação infantil do que para o fundamental. A desvantagem é que essa transição poderia acontecer de forma mais benéfica para os alunos, que precisam ter seu tempo e momento de aprendizado respeitados. Vi muitas atividades para escrever cabeçalho, nome de diretor, mas nada que remetesse ao repertório que elas já carregavam. É preciso um cuidado com essa continuidade. Claro que a criação de uma diretriz curricular, que é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que abrange do ensino infantil ao médio, foi muito importante, pois ajudou os professores a pensarem justamente nisso. Notei que eles estão abertos a modificarem e melhorarem a prática. O que falta mesmo é um diálogo. 


De que forma os pais podem atuar nessa passagem do infantil para o fundamental para ajudar os filhos? As famílias precisam estar presentes na vida do aluno, participar realmente da vida escolar da criança. Não é só deixar e buscar na porta da escola. Eu via muito um caráter informativo da realidade da escola: tinha reunião de pais, mas ela era passiva, os professores informavam sobre diversos assuntos. Precisamos de um caráter mais participativo das famílias, de modo que elas atuem juntamente com a escola. Quando o diálogo e as ações são compartilhados, todos saem ganhando - especialmente as crianças.  


De que maneira o afeto pode contribuir no processo de aprendizagem da criança e ajudar nessa passagem? A parte afetiva é a principal. Acredito muito que pelo afeto e pelas emoções, a criança se sente segura naquele ambiente e é disso que depende o “sucesso” na vida escolar. Quando os pais passam a segurança de que aquela escola é a melhor naquele momento, isso reflete muito no processo de aprendizagem. A criança precisa se sentir acolhida também pelos colegas e professores. Aproveito aqui para compartilhar uma experiência que tive recentemente e que mostra o quanto o afeto é a peça central para a mudança: tenho uma aluna de 9 anos que tem a habilidade motora compatível com a de uma criança de 3. Durante uma pré-prova, expliquei as regras que seriam levadas em consideração. Uma delas dizia respeito justamente à habilidade motora. Ela ficou preocupada e me procurou junto com três amigas para dizer isso. Falei que, realmente, essa habilidade seria levada em conta. Foi quando as amigas pegaram a bola e fizeram uma rodinha para “treiná-la”. Em seguida, disseram que ela precisava segurar aquela bola como se fosse o seu próprio irmão. Que não poderia deixá-la cair de jeito nenhum. A aluna com dificuldade começou, então, a reagir. Foi incrível. E a maior motivação para esse sucesso foi o afeto. Sem ele, nenhum conhecimento vale a pena.